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sábado, 25 de abril de 2009

Elogio Histórico da Razão.

Elogio Histórico da Razão
Voltaire – 1775.


Fez Erasmo, no século XVI, o Elogio da Loucura. Vós me ordenais que vos faça o elogio da Razão. Essa razão, com efeito, só costuma ser festejada duzentos anos após a sua inimiga, e às vezes muito mais tarde; e existem nações onde ela ainda não foi vista.
Era tão desconhecida entre nós, que nem sequer tinha nome em nossa língua. Apodrecemos por muito tempo nessa horrível e desonrosa selvageria, da qual as Cruzadas não nos tiraram. A Razão ocultava-se num poço, com a Verdade, sua filha. Ninguém sabia onde ficava esse poço, e, se o descobrissem, ali teriam descido para degolar mãe e filha.
Depois que os turcos tomaram Constantinopla, redobrando os espantosos males da Europa, dois ou três gregos, ao fugirem, tombaram nesse poço, ou antes, nessa caverna, semimortos de cansaço, de fome e de medo.
A Razão o recebeu-os com humanidade. Receberam dela algumas instruções, em pequeno número, pois a razão não é prolixa. Obrigou-os a jurar que não revelariam o local do seu retiro. Partiram, e chegaram, depois de muito andar, aos salões reais.
Receberam-nos ali como mágicos para distrair a ociosidade dos cortesãos e das damas, no intervalo de seus encontros. Chegaram até a ser acolhidos pelo rei da França, que lhes lançou um olhar de passagem, quando ia se encontrar com sua amante. Mas eles foram mais bem compreendidos nas pequenas cidades, onde encontraram alguns burgueses que ainda tinham um pouco de senso comum.
Esse fraco clarão se extinguiu em toda a Europa, entre as guerras civis que as assolaram. Duas ou três faíscas de Razão não podiam aclarar o mundo no meio das tochas ardentes e das fogueiras que o fanatismo acendeu durante tantos anos. A Razão e sua filha ocultaram-se mais do que nunca. Enfim, há algum tempo lhes deu vontade de ir em peregrinação a Roma disfarçadas e anônimas, por medo da Inquisição. O papa reconheceu os disfarces e as beijou cordialmente. Após os cumprimentos, trataram de negócios. Logo no dia seguinte, o papa aboliu leis, diminuiu impostos de que o povo se queixava, estimulou a agricultura e as artes, fez-se estimado por todos.
Satisfeitas, as duas se despediram do papa e continuaram a viagem sem precisar de disfarces. Passaram pela Itália, pela Alemanha, pela Áustria, pela Inglaterra e pela França.
- Minha filha – dizia a Razão à Verdade -, creio que o nosso reino poderia bem começar, após tão longa prisão. Era preciso passar pelas trevas da ignorância e da Mentira antes de entrar em teu palácio de luz, de que fosse expulsa comigo durante tantos séculos. Acontecerá conosco o que aconteceu com a natureza: esteve ela coberta de um véu e toda desfigurada durante inumeráveis séculos. Afinal, chegou um Galileu, um Copérnico, um Newton, que a mostraram quase nua, fazendo os homens enamorarem-se dela. Vejo que há dez ou doze anos os europeus se vêm empenhando para pensar mais solidamente do que haviam feito durante milhares de séculos. Ousou-se pedir justiça. Ousou-se, enfim, pronunciar o nome da Tolerância.
- Pois bem, minha filha, goze destes belos dias; fiquemos por aqui, se durarem; e, se vierem tempestades, voltemos ao nosso poço.

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